Por esses dias um grilo tem visitado os “Alpes da Brasilândia” onde resido. Passa a noite a “cricrilar” em frente à minha janela. Incansavelmente. Por incrível que pareça, os renitentes “cri-cris” não me incomodam, pelo contrário. Levam-me de volta à minha infância querida, encalacrada em algum canto escuro e distante da minha memória.
Diferente de muitas pessoas, não vou contar histórias incríveis de uma criança cheia de vida. Aliás, não vou contar história alguma. Vou escrever sobre a minha percepção de mundo, muito diferente das outras crianças.
Nunca fui convencional. Sempre atentei para coisas que ninguém, até seus seis anos de idade, prestava atenção. No vento soprando as nuvens e os resquícios de lua pela manhã, o movimento demorado do Sol pela janela deixando o canto da minha cama, o cheiro da chuva e o céu confuso entre tons cinzentos e o azuis. Claro que gostava de brincar, mas era isso que me fascinava. Ficava parado, observando com paciência, percebendo o momento segundo a segundo e, às vezes era isso o que durava. Poucos segundos.
Lembro de uma janela rachada no quarto de minha avó.A fissura atravessava o vidro na diagonal, fazendo uma curva que começava quase reta e terminava íngreme. Gostava de ficar olhando para ela e imaginando que era parte do desenho de uma montanha bem verde e que eu desceria de carro um dia. Até cortei-me certa vez quando resolvi fingir que o carro era meu dedo. Com três anos de idade, ainda temia o sangue. Não senti a dor do ferimento, no entanto chorei ao ver o vermelho vivo.
Recordo quando viajava com meus pais para colônias de férias na praia. A sensação de estar em um lugar novo, ainda que sempre fosse o mesmo. Pessoas novas, amigos novos, as brincadeiras, tentar ver os filmes que exibiam a noite e que crianças não podiam ver, tentar pescar girinos pensando que eram peixes pretos, a grama da noite molhada pelo sereno, o ar úmido de praia, a areia entrando no tênis, o xixi escondido no mato e o som dos grilos.
Uma lembrança muito marcante era o som dos grilos anunciando a chegada da noite. Dezenas deles, fazendo aquele “cri-cri”, me hipnotizando, dizendo: “Olha, a noite chegou, você já viu a lua?”. Adorava ir para algum canto, solitário, ouvir os grilos, ver a lua e sentir o cheiro do mato. Desligava do mundo nessas horas. Pensava sobre tudo enquanto escutava aqueles sons que me encantavam e que eu nunca sabia de onde vinham ao certo. De alguma forma, sabia que um dia isso ia mudar, então, sentia o peito apertado, com saudade de uma história que havia apenas começado.
Saudade que hoje é real. Um encanto que a vida adulta me tomou, prazeres que hoje, não são mais tão simples. Lembranças doces e distantes que um grilo perdido na cidade trouxe de volta. Um abraço quente que não sentia há tempos, de mim mesmo vinte anos mais novo. Outra vez, ao deitar na cama, vou dizer: “Boa noite, meu amigo.”. Espero ouvir sua resposta mais uma vez. “Cri! Cri! Cri!...”
| Silêncio!! |
terça-feira, setembro 12, 2006
Sussurros da noite.
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4 comentários:
É interessante como as lembranças que temos da infância são especiais..Elas têm cor,cheiro,voz..quase podemos tocá-las qdo retornam à memória.
Lembranças doces,amargas,agridoces...não importa.Elas estão em nós,nos constituiram enquanto pessoas que somos...doces,amargas,agridoces...
Legal isso!
Gosto mais dos grilos a partir de agora...hehehe
Um grande beijo pra ti.
cri-cri!
=)
vc sabe o qto eu gosto das coisas que vc escreve, sempre mostrando que vc tem uma outra realidade de vida e do mundo!
Sabe o que eu acho mais engraçado? Que passamos a infância toda tentando superá-la e que, quando finalmente adultos, sentimos saudades de quando éramos crianças. Há coisas na vida que marcam para sempre nossas almas... lendo esse maravilhoso texto, lembrei-me de coisas que fizeram meus olhos se encher de lágrimas... emoção por ter vivido aquele tempo, saudades por saber que não se repetirão....
Amei o texto... principalmente porque é real!
Beijoks...
Posso dizer que vivi cada momento com muita intensidade. Nunca quis atropelar as etapas pretendendo ser o que ainda não era.
O "cri-cri" que me toca são certas palavras que me lembram o passado, que passou. Uma realidade que ajudou a construir minha personalidade, mas da qual não sinto saudade. Apenas lembro com certa emoção e não desejo que volte.
Mas, admiro que você tenha essa rica experiência de sensações, da qual posso compartilhar agora e perceber todo o sentido que isso faz.
Talvez, o "cricrilar" que você ouça no futuro te remeta a esse nosso tempo. Não importa. O que importa, meu amigo, é que você VIVEU.
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